Artigo de Jurema Machado -
Arquiteta, Presidente do Iphan
Nas últimas décadas, a
ideia de Cultura, antes entendida como algo que servia para distinguir as
pessoas por suas origens e classes sociais, volta-se para o reconhecimento e a
valorização dos traços comuns de nossa humanidade, que é essencialmente diversa,
criativa e fonte dos mais diversos protagonismos. As políticas de patrimônio
antecedem em pelo menos dois séculos a esse debate, ocorrido sobretudo na
segunda metade do século XX e tendo a Unesco do pós guerra como principal palco
de convergências. Na Europa Ocidental, o patrimônio está presente nas políticas
de estado desde o final do século XVIII, quando veio dar materialidade aos
conceitos de nação e nacionalidade trazidos pela Revolução Francesa.
No Brasil, a atenção para
com os museus e a memória nacional data do final do século XIX, mas uma efetiva
política de patrimônio, contendo a base daquilo que praticamos até hoje, vem do
governo Vargas, mais precisamente de 1937, quando se edita o Decreto Lei 25 e é
criado o Iphan. Vigente até hoje, o Decreto Lei 25/37 tornou-se um campeão de
longevidade, sobrevivente a três Constituições Federais, certamente por ter se
antecipado à visão dominante na legislação brasileira de então, ao fazer
prevalecer o interesse coletivo sobre o individual no que se refere à propriedade
privada. Esse princípio basilar, a solidez e a contemporaneidade de seus
criadores, ao lado de circunstâncias políticas que vigoravam nesses anos
originais, deram ao Iphan a sustentação necessária para se afirmar e percorrer
uma trajetória muito peculiar na administração pública brasileira, tornando-se
uma instituição que é devota fervorosa - e praticante reconhecida - do
interesse público, da abordagem técnica especializada e de políticas e
programas pouco suscetíveis à descontinuidade administrativa.
Ao longo desses anos, o
alargamento do sentido do patrimônio, na mesma direção do ocorrido com a
política cultural como um todo, passou a requerer que a proteção do estado se
estenda desde um sítio urbano complexo e dinâmico como o Plano Piloto de Brasilia,
ate à pequena casa de madeira povoada de objetos de uso cotidiano do
seringueiro Chico Mendes, em Xapuri, no interior do Acre. Ou à salvaguarda dos
modos de fazer tradicionais relacionados ao manejo de alimentos ou recursos
naturais; de celebrações como o Círio de Nazaré ou a Festa do Bonfim; ou de
expressões como o Frevo e a Roda de Capoeira, considerada pela Unesco, no
último dia 26 de novembro, como Patrimônio Imaterial da Humanidade, ao lado do
Frevo, do Círio, do Samba de Roda e da Arte Kusiwa dos índios Wajãpi, que já
haviam sido reconhecidos em sessões anteriores. Tudo isso ao abrigo de um
decreto (o Decreto 3551/2000), que cria a política e o Registro do Patrimônio
Cultural Imaterial brasileiro, o qual, mais do que conferir títulos, implica em
responsabilidade do ente público para com esses bens. Na sequência da política
do patrimônio imaterial, cuja transversalidade e forte embasamento social
irrigam e oxigenam a política de patrimônio como um todo, agregou-se
recentemente a valorização da diversidade linguística de um país que, durante
toda sua história recente, ostentou seu orgulho por falar uma única língua, o
Português, mas que, ao contrário, ainda preserva a riqueza inestimável de
possuir falantes de mais de 180 línguas indígenas, algumas línguas de imigração
hoje desaparecidas nos seus países de origem e remanescentes de línguas
africanas.
Esse amplo espectro impõe
que a política de patrimônio se relacione com os campos mais diversos, como a
gestão urbana, a gestão ambiental, os direitos humanos e culturais, atuando
desde o poder de polícia até a educação, a formação profissional e a pesquisa,
sem falar de uma crescente interface com o ambiente internacional. Como
decorrência, resultam números impressionantes. Se, por um lado, esses números
representam um bom indicador – o da afirmação da política de patrimônio – por
outro lado preocupam, ao denotar o pouco compartilhamento de responsabilidades
com outros entes. Vejamos alguns exemplos: cerca de 40 mil imóveis estão
localizados em conjuntos urbanos tombados, o que implica acompanhamento,
autorização de intervenções e fiscalização; o licenciamento ambiental prevê a
participação do Iphan visando minimizar impactos sobre o patrimônio cultural, o
que representa mais de mil processos de licenciamento por ano, envolvendo desde
as grandes obras de infraestrutura até intervenções urbanas de menor porte; a
cada ano, são analisados cerca de 50 mil bens em processo de transferência,
permanente ou temporária, para o exterior, visando o combate ao tráfico ilícito
de objetos de bens de valor cultural; com a extinção da Rede Ferroviária
Federal, o Iphan, após 2007, tornou-se responsável pelo patrimônio ferroviário,
presente em mais de 1200 municípios, incluindo edifícios, bens móveis e acervos
documentais. Embora quantitativamente menos numerosa, é de grande complexidade
a salvaguarda do patrimônio imaterial e a relação com o chamado “patrimônio
vivo”, justamente pela natureza diversa e pela dinâmica dessas manifestações.
Toda essa amplitude,
somada ao grande volume de investimentos públicos e privados que vem sendo
aplicados nos últimos anos, especialmente em infraestrutura, fazem com que
estejamos vivenciando um dos períodos mais desafiadores da história da
preservação no Brasil. Não é exagero dizer que quase todos os locais
emblemáticos do nosso patrimônio urbano estão passando por algum tipo de
transformação, seja material, seja social, envolvendo tipos ou intensidades de
uso do solo ou de apropriação pela população. O patrimônio arqueológico é
também objeto de permanente atenção, o que se traduz em quantidades inéditas de
pesquisas arqueológicas financiadas pelos próprios empreendedores das obras em
processo de licenciamento. Essas pesquisas, por sua vez, levaram a um
crescimento exponencial de cursos de formação em arqueologia, ainda assim
insuficientes para a demanda atual do mercado de trabalho.
No entanto, é também
verdade que condições mais favoráveis quanto aos investimentos na preservação
têm sido possíveis, especialmente no âmbito federal. Mais do que recursos
orçamentários, é emblemático o fato de o patrimônio ter tido acesso ao núcleo
central de financiamento da política de desenvolvimento do país, ou seja, ao
seu programa de infraestrutura, o PAC. Para o seguimento Cidades Históricas foi
disponibilizado orçamento que representa, se considerada sua distribuição
anual, mais de cinco vezes a média do que se investia anualmente em
conservação. Esse aporte, no entanto, põe em evidência o grande desafio que é
lidar com o mercado de produção das obras de restauração, ainda formatado para
uma demanda muito inferior, com poucos profissionais e poucas empresas
especializadas e, principalmente, requer enfrentar a reduzida capacidade
instalada nos municípios, que são os executores prioritários do programa sob a coordenação
do Iphan.
Vale dizer que, mais do
que financiamento para a preservação, o país como um todo enfrenta hoje
desafios de gestão. Concretamente, esses desafios se traduzem, por exemplo, em restabelecer a vitalidade de centros históricos esvaziados de população
residente e apartados da dinâmica urbana, como acontece em São Luis ou em
Salvador; ou em reutilizar, de forma sustentável, um vasto conjunto de imóveis
de valor cultural, cujo exemplo mais notável é o do grande acervo da antiga
RFFSA; ou, ainda, em dialogar com os mais diversos atores para alcançar os
pactos necessários à salvaguarda dos bens imateriais.
É necessário procurar o
equilíbrio entre os papéis da União, dos Estados, dos Municípios, da comunidade
e do setor privado, investindo fortemente na ampliação de uma rede de proteção
e valorização do patrimônio, não só para desonerar o órgão federal de tantas
responsabilidades, mas para alcançar a verdadeira razão de existir do
patrimônio, que é fazer sentido no universo e na vida cotidiana dos cidadãos.
É preciso olhar para o
patrimônio como um recurso mobilizador, como ele de fato é, não apenas da
economia dos serviços do turismo ou da reabilitação urbana, mas como força
capaz de nos apresentar contrapontos para olhar com mais senso crítico e lucidez
à nossa volta. Visualizar nossa trajetória histórica representada pelos sítios
e monumentos nos fará perguntar sobre a arquitetura, as cidades e os espaços
públicos que estamos produzindo, observar para onde caminham as nossas formas
de sociabilidade e a nossa relação com o ambiente; a comparação entre
reaproveitamento e descarte de materiais e de energia nos fará indagar sobre o
uso sustentável de recursos, criatividade e inovação; diante de práticas, ritos
e saberes tradicionais, podemos aprender a reconhecer seus aportes de
conhecimentos e de visões de mundo e respeitar seu desejo de resistência a um
destino nivelador que vai se impondo a todos e a todas as coisas.
Na contramão do mundo em
que vivemos, o patrimônio não está sob o domínio do efêmero e do imediato, mas
resulta do acúmulo e da experiência. Nele se funde o nosso melhor como país e,
se soubermos alcançar a amplitude dos seus significados, neles estarão muitas
das nossas chaves para encontrar uma forma particular para o nosso projeto de desenvolvimento.
Artigo publicado
originalmente no jornal Estado de Minas