segunda-feira, 12 de maio de 2014

A Bahia é uma escola que virou referência


Foto: Luciano da Mata / Ag. A Tarde


De oito terreiros de candomblé considerados patrimônios nacionais, sete estão na Bahia. Isso dá à representação regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o status de referência em uma ação pioneira até mundialmente e que começou há 30 anos com o tombamento da Casa Branca. Nessa entrevista, Carlos Amorim, superintendente regional do instituto explica essa e outras questões sobre os bens culturais.


Cleidiana Ramos - O tombamento do terreiro Casa Branca está completando 30 anos. Foi o primeiro templo afro-brasileiro tombado pelo Iphan. O processo provocou polêmica.


Carlos Amorim - Na época do tombamento, eu estava trabalhando no projeto de Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia (MANBA). Para o tombamento,  o conselho consultivo do Iphan se  dividiu. Uma das discussões era que não seria possível tombar um espaço que poderia sofrer modificações. Na verdade, a  raiz dessa discussão  era sobre o  tombamento de um tipo de monumento que não tinha precedente. Até então o conceito de patrimônio estava muito  ligado a pedra e cal e aos valores eurocêntricos. Como reconhecer a monumentalidade de um bem que não tinha escala e elementos que fossem alegóricos e pictóricos? As pessoas não conseguiam  alcançar a importância que  um templo afro-brasileiro, como a Casa Branca, tinha para a formação e integridade da cultura nacional.


CR - De certa forma, isso altera a noção de patrimônio.

 
CA - Completamente. É um ponto de inflexão no conceito de patrimônio histórico, que foi  fundado pelo Decreto 25,  de 1937. Esse foi um momento crucial na trajetória do Iphan. A partir desse momento,  a ideia de extraordinário se associa à ideia de singular. Passa a  ter  valor não apenas o que se convencionou como  patrimônio que era a cultura europeia. Há uns três anos começou a se difundir a tese de que o Decreto 25 estava superado.  Essa ideia é inteiramente despropositada. É muito bom você ter um diploma legal no mundo onde tudo se desmancha tão rapidamente. Com o tombamento do terreiro da Casa Banca foi reconhecida a relação entre valores e o espaço para a organização de uma cosmogonia. Com esse reconhecimento a ideia de patrimônio mudou completamente. Não é um processo de reparação, pois para ela existem outras políticas.  A Casa Branca foi tombada porque ela foi imprescindível para a formação da cultura brasileira. Então, o conceito de patrimônio passou a considerar como monumento não apenas aspectos artísticos mas aspectos fundamentais do ponto de vista cultural, histórico e até antropológico ou etnográfico.


CR - Em um cenário em que os terreiros perdem área por conta da expansão urbana desordenada, o tombamento virou uma esperança. Também é visto como forma de conseguir recursos. Mas o que ele significa de fato e quais as suas limitações e possibilidades?


CA - O  tombamento sempre foi considerado uma coisa negativa. Na medida em que os governos de Lula e depois o de Dilma começaram a destinar uma quantidade de recursos expressiva para a área de patrimônio, houve um despertar da sociedade brasileira para ver que o patrimônio, além de ter  valor, é valioso sob os mais variados aspectos. O patrimônio, além de ser um símbolo de prestígio, pode viabilizar  recursos para a manutenção do bem. As comunidades resistiam muito ao tombamento, mas os terreiros sofrem terríveis pressões urbanas, porque a maioria está em Salvador, que é a segunda menor capital do país em área. A pressão sobre o solo urbano é extraordinária, ao mesmo tempo em que o capital mais valioso da cidade é o capital imobiliário. Isso aumenta ainda mais as tensões em torno de uma área que deve permanecer razoavelmente intacta e desocupada, no sentido de não estar  apinhada de construções. O município de Salvador fez algumas legislações que foram aviltadas durante os últimos 40 anos. Os terreiros sofreram violentas pressões. É possível ver isso claramente no Gantois que fica numa área super adensada e  que possui grande valor econômico.


CR - O tombamento também impõe limitações.

 
CA - O  tombamento limita o exercício do direito de propriedade em razão de um aspecto particular da razão social. Toda propriedade tem uma função social. Nem a sua casa você pode deixar ao abandono se isso causa risco a terceiros. No caso do tombamento é preciso preservar o bem e impedir a sua mutilação. Na ausência do proprietário,  o Estado pode assumir essa responsabilidade ainda que o proprietário nunca seja isento de ter que contribuir ou participar da conservação e manutenção do patrimônio. Isso significa também que, como há essa responsabilidade do estado,  o cidadão proprietário da coisa tombada não pode abandoná-la e está sujeito ao interesse público no regramento do uso dessa propriedade tombada. Não há autonomia para fazer o que quiser.  O tombamento  limita o exercício do direito de propriedade sem retirar a propriedade. De outra parte o tombamento hoje possibilita acesso a uma série de linhas de crédito sejam elas provenientes do Ministério da Cultura sejam elas resultado de renúncia fiscal. Isso faz com que os bens tombados tenham alguns privilégios nas ações de conservação.

CR - As comunidades religiosas que entram com processos de tombamento, geralmente ficam muito ansiosas em relação ao resultado.


CA - Os processos de tombamento são muito rigorosos. Como significa uma restrição do direito de propriedade e a ação de proteção pelo estado é muito recente,  os processos são rigorosos, longos e demandam estudos e instruções muito complexos.  O fato de ser um terreiro de candomblé não significa que ele precisa ser tombado como um patrimônio nacional. O que vai ser determinante é a contribuição que ele fornece para a consolidação dos valores artísticos, etnográficos e  antropológicos na cultura brasileira. Como há questões também   subjetivas nesse entendimento é preciso, portanto, estar profundamente  justificado para não ficar apenas à mercê da  expressão da vontade de um intelectual, de um burocrata. Isso não faz o menor senso. Os terreiros para ser protegidos  não precisam estar tombados pela União. Podem ser tombados pelos estados e se  beneficiar dos programas culturais em razão de sua própria importância cultural.

 
CR - Dos oito terreiros reconhecidos pelo Iphan, sete estão na Bahia. Dá para falar que aqui se formou uma escola  de referência?


CA - Sim e nos enche de orgulho. Na minha gestão no Iphan já são dois terreiros tombados: o Oxumarê  e a Roça do Ventura que tem registro provisório e está em vias de ter o tombamento oficializado.   Essa escola foi formada com experiências, como o  Mamba e atuação de pesquisadores como Vivaldo da Costa Lima e tantos outros.  A mudança do conceito de monumento possibilitou o nascimento da  proteção do patrimônio imaterial e de culturas que não erguem coisas permanentes como a  arte dos índios kosiva ou a renda irlandesa de Divina Pastora em Sergipe. Isso  tudo é fruto da mudança da ideia de monumento que o tombamento do Terreiro Casa Branca propiciou e abriu.

 
Fonte: Jornal A Tarde – Edição de 12/05/2014 – Por Cleidiana Ramos