Uma verdadeira maratona está sendo executada para o
resgate histórico da pintura do forro da nave da Igreja da Venerável Ordem
Terceira de São Domingos Gusmão, atribuída a José Joaquim da Rocha, maior
pintor do barroco brasileiro. O conjunto de edificações e a igreja,
pertencentes à Venerável Ordem Terceira de São Domingo Gusmão, localizados no
Centro Histórico de Salvador, são os primeiros monumentos baianos a receber
investimento do PAC Cidades Históricas, através do Iphan, que contratou
serviços técnicos especializados de arquitetura e engenharia, no valor
de R$ 7,5 milhões.
As
obras de restauração começaram o ano passado e, ao acessar o forro da nave,
constataram-se logo os danos no madeiramento e na pintura. O que seria apenas
uma remoção de verniz e sujidades, tornou-se um trabalho inédito realizado em Salvador.
“Acredito que estamos diante de um momento importante de revalorização e
resgate de um raro exemplar da pintura barroca pensada e executada na Salvador
do século XVIII”, afirma o coordenador dos trabalhos Júlio Maia, restaurador e artista plástico, especialista em restauração de bens móveis e em gestão
e prática de obras de conservação e restauro do patrimônio cultural.
Pintura descaracterizada
A
representatividade historiográfica que envolvia a pintura encontrada na nave,
levou Júlio Maia a solicitar uma avaliação da mestre e doutoranda pela UNICAMP,
Mônica Farias, que desde 2006 estuda a pintura de Falsas Arquiteturas em
Salvador, especificamente o legado deixado por José Joaquim da Rocha. Já no
primeiro encontro e com a obra a poucos centímetros dos olhos, Mônica revela
que ficou “abismada com o que via e constou tamanha velação e ocultamento de
elementos decorativos e figurativos, bem como incongruências gramaticais de
partes arquitetônica e figurativa”.
“Se
a pintura da nave da igreja da Ordem Terceira de São Domingos pertence de fato
ao José Joaquim da Rocha, teria que ser algo que estava oculto, velado, ou por
baixo do que se representava, pois a que estava ali em nada se parecia com a
gramática figurativa e paleta artística do pintor”, salienta Mônica. O forro, segundo
documentos do século XIX, passou por três intervenções. Bento Capinam foi o
primeiro a intervir, o segundo já em 1877, foi Francisco José Rufino de Sales
que não concluiu o trabalho sendo chamado para isso José Antônio da Cunha
Couto. No século XX também foram feitas intervenções no forro da nave o que
descaracterizou a pintura original.
No
processo de restauração muita coisa específica da paleta de José Joaquim da Rocha
(re)apareceu, incluindo aí as cores e suas nuances, o efeito de luz e sombra,
algumas especificidades figurativas, como vasos de flores, guirlandas, anjos,
cartelas, pináculos, fragmentos corporais completos. Partes da malha
arquitetônica que emoldura a cenografia central com falhas de traça, repintadas
em cores opacas e densas escondendo a volumetria, sacadas descontinuadas, são
outras agrúrias encontradas e que puderam, dentro das possibilidades, serem
resgatadas.
Encontrada folha de ouro
Outro
fato inédito também foi consagrado nesse processo de restauração, que é a
utilização do uso do ouro em uma pintura de tetos em Salvador. Até o presente
momento essa ocorrência só era registrada em igrejas europeias, em específico
as portuguesas. Encontrar a folha de ouro aplicada em uma pintura de forro aqui
insere novas leituras e interpretações não somente para a técnica empregada
pelo artista, mas pelo nível de financiamento e efeito cenográfico que a
Irmandade empregava para a execução da obra alcançar o desejado, que
ultrapassava a questão decorativa. Percebe-se a presença do uso do ouro em
muitos lugares nesta pintura, uma técnica que coloca o José Joaquim da Rocha em
situação de relevância, pois ele era, também, dourador.
Para
Mônica, resgatar a obra na sua fiel intimidade e ir o mais próximo da produção
primeva, é consolidar uma história que envolve não apenas um nome, mas a
relevância desta para a conjuntura de uma época. “As técnicas utilizadas, a
consolidação de Salvador como uma Colônia de avançado conhecimento científico
para a produção de pinturas de forro, o poder financeiro religioso e,
sobretudo, o objetivo Tridentino alcançado pelas Ordens Religiosas, tudo isto
está envolvido em uma produção desta tipologia”, ressalta.
“É uma
descoberta espetacular”, afirma o superintendente do Iphan na Bahia, Carlos
Amorim. Ele disse que a obra estava, e
ainda continuará, em algumas partes, descaracterizada pelo excesso de repinturas
e restauros inadequados, mas “o que já conseguimos, revelando elementos
decorativos, arquitetônicos e figurativos ocultos por camadas densas de tinta e
mesmo por critérios de desconhecimento da continuidade da gramática geométrica,
já nos fornece uma nova realidade historiográfica à obra”.
Restauração de bens móveis e integrados
Carlos Amorim informou que, além da obra original
de José Joaquim da Rocha, foram descobertas ainda pinturas subjacentes nas
paredes dos corredores laterais, nas paredes da nave, na parte alta próxima ao
forro e nas paredes da capela-mor, no alto ao fundo das sanefas. Na sacristia
foram reveladas pinturas escaioladas (imitação de mármore) nas tábuas da
cimalha do forro com frisos em prata (coisa rara de se ver), em todas as
cercaduras das portas e das janelas, nas molduras das telas. “Todas as pinturas
na parte inferior das paredes são de boa qualidade artística”, destaca.
A intervenção proposta na Igreja da Venerável Ordem
Terceira de São Domingos Gusmão contempla a execução de obras que promoverão o
restauro dos bens imóveis, dos bens integrados e da imaginária da Arte Sacra,
guardadas no interior da igreja e a requalificação dos espaços internos
promovendo a acessibilidade universal a todos os seus ambientes internos. Serão
também readequadas as instalações elétricas para atender as novas cargas
exigidas. “Com as ações elencadas teremos totalmente restaurado um monumento
tão importante na composição do quadrilátero do Terreiro de Jesus”, enfatiza Carlos
Amorim.
Artista completo
Por Mônica Farias
Por Mônica Farias
"A presença de José Joaquim da Rocha entre 1764 a 1801,
período em que se constata a produção de obras painelistas e de teto, revela
como Salvador se configurou com o ensino oficinal e como o importante
conhecimento sobre as leis e simbologias cristãs foram essenciais para a
formação de um pintor, sobretudo quadraturista.
Rocha demonstra ter sido um artista que vivenciou a
essência das culturas Clássica e Barroca, reafirmando conhecimento erudito e de
grande relevância dentre os estudos da perspectiva, pois seu domínio sobre as
leis científicas, técnicas, formais e religiosas contribuiu para um resultado
que o reafirmou como preterido entre as principais Irmandades da época
setecentista.
Demonstrou elevado nível de contribuição estética e
estilística para os artistas locais, pois o legado de obras que seguem a mesma
temática, solução formal e compositiva, evidencia que a atividade artística
educacional a qual conduziu na cidade, foi formadora de inúmeros talentos que
postergaram obras até o século seguinte (XIX), sendo alguns deles, egressos da
fundação da Academia de Belas Artes da Bahia.
Foi um artista completo dentro da sua profissão, pois
além de pintor, atuou como dourador, restaurador e mestre artístico pelos
modelos medievais (oficinal). Revelou ter sido honrado, bem quisto, amigo,
solidário pelas questões sociais e, sobretudo religioso. A imortalização do seu
trabalho persistirá enquanto suas obras puderem ser resguardadas e asseguradas
pelo patrimônio e por pessoas que entendam a sua importância.
No entanto, em se tratando das obras de forro, merecem
atenção especial em face da condição de preservação em que se encontram. O
legado artístico de Rocha relativo às obras de Falsa Arquitetura em Salvador
compõe, atualmente, o acervo de maior preciosidade para a história da arte
brasileira, visto que não há, em qualquer Estado, o número de tetos pintados
que possuímos, e não apenas de sua autoria. Sua permanência e zelo implicam
diretamente em deixar viva a memória de uma educação científica existente em
nível de estrutura pedagógica jamais imaginada nos moldes atuais, motivo pelos
quais merecem estar sendo continuado e aprofundado seus estudos.
Admirar o trabalho de José Joaquim da Rocha é
mergulhar em um mundo simbólico e cheio de significados. É ser arrebatado pela
arte enquanto ciência. É ser partícipe de uma cena litúrgica configurada para
educar o olhar e os sentidos do fiel, exatamente como desejava o Concílio de
Trento".
Galeria de fotos
Fonte e Fotos: Ascom - Iphan - Ba